terça-feira, maio 16, 2006

A greve de onibus - Da ira a um momento de paz espiritual

A greve de ônibus - Da ira a um momento de paz espiritual

Paulo de Almeida Ourives

São três e meia da manhã, levanto da cama em um pulo, e corro para o banheiro para me lavar, tomar um banho e ir para o trabalho. O barulho que fiz em abrir a porta do meu quarto e fechar a do banheiro logo desperta os meus pais, naquele momento eles já sabiam que eu estava me preparando para mais um dia de trabalho. A minha mãe que já estava de prontidão esperando que eu me levantasse foi de imediato para a cozinha preparar o café. Após me lavar e tomar um banho, vou para o meu quarto vestir o uniforme da loja em que trabalho. Saio do quarto já pronto e encontro o meu pai na sala, ainda sonolento, me perguntando porque que eu levantei tão cedo.
Respondo-lhe que como há uma greve de ônibus e ninguém tem notícias se eles irão voltar a trabalhar, irei até a Prainha, em Vila Velha, e de lá pegarei a primeira barca. Pois ainda é cedo, e certamente mais tarde, elas ficarão lotadas, correndo o risco de virarem na Baía de Vitória.
Tomo meu café, volto para o meu quarto, para pegar alguma coisa (não me lembro o quê!), e saio pela madrugada, com destino a Prainha. Ao sair ainda escuto o meu pai falando que está muito escuro e é perigoso. Já é tarde, a minha pressa é tanta que já estou bem longe para responder-lhe que para quem tem fé em Deus, nada irá acontecer.
Da porta do apartamento, que fica num imenso conjunto habitacional, até a rua é um bom pedaço. Passo pelo portão, cumprimento o vigia da noite, e tomo o meu rumo, subindo a rua Santa Leopoldina até a rua Luciano das Neves, em sentido contrário ao dos veículos.
Logo que chego na primeira esquina, ainda próximo do conjunto, começo a pensar e praguejar contra os motoristas de ônibus, que no dia anterior, resolveram começar a greve ao meio-dia, deixando milhares de usuários nas ruas de Vitória.
- “Esses capixabas são uns frouxos, se fosse no Rio de Janeiro, tenho certeza que eles seriam apedrejados e linchados em praça pública pelos próprios usuários. Mas, como é aqui, o capixaba não reclama de nada e ainda aceita essa baderna!”.
Foi com esse pensamento, que comecei a minha caminhada, com raiva, e porque não dizer ódio daquela situação. Confesso que a raiva não era apenas por mim, mas pelas milhares de pessoas que também trabalhavam no centro de Vitória e que como eu moravam bem distante. Havia pessoas que moravam em Viana, o município da Grande Vitória que ficava mais distante da capital. E o que dizer dos moradores da Serra? Outro lugar distante.
- “Porque o governo não toma uma atitude e acaba de vez com essa palhaçada? Já deveriam ter tomado uma atitude e proibido os motoristas e cobradores de cometerem esse desatino, contra a população. E eles (os motoristas), ainda acham que com essa atitude irão colocar o povo ao lado deles e contra o governo! São uns burros, isso sim!”
Já estava na esquina das ruas Santa Leopoldina com Luciano das Neves e entre um pensamento e outro, vislumbro o céu. Havia sido uma noite clara. Naquele ponto da avenida, já mais alto do que a rua Santa Leopoldina, consigo ver as Três Marias bem no alto da minha cabeça, um pouco mais para a minha direita, vejo o Cruzeiro do Sul.
- “Aquela estrela ali é o planeta Vênus. Que noite maravilhosa, pelo visto o dia hoje promete uma praia, e eu tenho que ir trabalhar. Ainda bem, que amanhã é sábado, e se o tempo estiver firme, no domingo pego uma praia”.
Estando firme em meus pensamentos, percebo aos poucos que ainda me sinto preso, andando devagar. Parecia que os maus pensamentos contra os motoristas não me deixavam andar da maneira como sempre andei, rápido. Tento então desprender-me daqueles pensamentos e soltar-me fazendo o que mais gosto, apreciar a natureza, observando a claridade no horizonte e, ao mesmo tempo, andar, andar muito, até chegar na Prainha.
Olho as horas, e vejo que os ponteiros avançaram muito e eu, quase nada em relação a distância que ainda falta até a estação das barcas. Aos poucos, concentro-me na minha caminhada e nos meus passos. Olho para a avenida e não vejo ninguém. Sinto que minhas pernas começam a se soltar, os meus passos passam a ser mais largos, os meus braços também se soltam, e começo a minha caminhada em ritmo acelerado.
- “Que bom, já estou chegando em Itapoã! Ali é a esquina da Jair Andrade, logo, logo, estarei no Terminal que deve estar vazio”.
- “Nossa! Já estou suando! Meu coração está mais rápido! E eu já consegui chegar até aqui em poucos minutos!”.
Passo pelo Terminal de ônibus e o vejo completamente vazio. Em outros dias, naquele horário já estariam chegando os primeiros ônibus para mais um dia de trabalho.
De repente, bem à minha frente aparece alguém andando tão rápido quanto eu, e também segue pela rua Luciano das Neves.
- “É um marreco! Aposto que ele deve estar atrasado. Mas se ele pensa que irá me ganhar na caminhada, ledo engano! Já estou acostumado a andar rápido e vou conseguir passar por ele”.
E assim, depois de ter começado a minha caminhada com ódio no coração, vou mudando o rumo dos meus pensamentos, e percebo que a medida em que livro o meu coração do ódio e do rancor contra os motoristas, vou me soltando e andando cada vez mais rápido.
- “Vou conseguir passar! Acho que quando chegar na esquina da Lojas Elmo, esse “marreco” ficará para trás”.
Os meus passos são rápidos, depois de ter passado pelo terminal, ando um bom pedaço até chegar a Praça principal de Vila Velha, onde na esquina das ruas Luciano das Neves e Champagnat, o capixaba se depara com a sapataria Elmo, e do outro lado o Bradesco. Naquela mesma calçada, com um cálculo matemático perfeito consigo passar pelo meu suposto concorrente.
Chego na esquina e ainda vislumbro à minha direita toda a extensão da Avenida Champagnat e, lá no horizonte, além da Praia da Costa, os primeiros clarões do alvorecer. Sigo em frente, ainda pela Luciano das Neves, e decido que na segunda esquina irei entrar à direita e depois à esquerda, pegando uma rua (não lembro o nome dela) que vai dar direto na estação das barcas.
- “Caramba, a hora está voando! Tenho que ser mais rápido, senão irei chegar atrasado, e não conseguirei pegar a primeira barca para Vitória”.
Depois que vi a hora no meu relógio, percebi que apesar de ter saído de casa tão cedo a hora tinha andado muito, e em poucos minutos a primeira barca iria sair. Só tive um segundo para respirar fundo e atirar-me em uma caminhada alucinante com destino a estação. Resolvi então parar de pensar e refletir, para me concentrar única e exclusivamente nos meus passos até conseguir chegar a estação, na Prainha.
Andei um bom pedaço, em passos rápidos. Quando cheguei atrás da Câmara Municipal, escutei o apito da barca, mais que depressa acelerei o mais que pude. Na praça em frente a estação resolvi então dar um bom pique, pois ainda precisava pagar a passagem para então entrar na barca.
Corri, e quando cheguei na estação antes de dirigir-me para a bilheteria - para minha frustração -, percebi que havia corrido à toa. O portão existente no saguão dos passageiros, ainda estava fechado, e aquele apito que me assustou nada mais era do que um aviso para aqueles que, como eu, ainda estavam na Prainha, pudessem apertar o passo, pois a barca já tinha chegado.
- “Droga, corri à toa, e já estou todo molhado de tanto suor. Ainda bem que está batendo este vento fresco, vou ficar na janela para me refrescar e, quando chegar em Vitória já estarei seco novamente”.
Cinco minutos depois de ter chegado na Prainha, ter pago a passagem e esperado o fiscal abrir o portão, corro para pegar um bom lugar na barca, apesar de ter poucas pessoas para viajar naquele horário.
Depois de tocar várias vezes o apito, o “mestre da embarcação”, começa a colocar a barca em movimento. Eu que havia me instalado na janela, bem atrás dele. Abro um pouco a minha camisa para refrescar melhor e percebo que já não me lembro de tantas coisas que havia pensado e praguejado contra os motoristas de ônibus. A única coisa que queria naquele momento era admirar a Baía de Vitória, naquela hora, quando os primeiros raios de sol começassem a surgir no horizonte. A barca pega o seu rumo, em sua trajetória normal, acompanhando a imensa pedra onde se localiza o Convento da Penha e o 56º Batalhão de Infantaria, em Vila Velha.
Quando a barca chega próximo das marquises da Terceira Ponte, a claridade do dia e o vento fresco, invadem a barca, refrescando-nos e mostrando que o dia que está nascendo será de sol claro. A barca então, faz uma curva para a esquerda e toma então o seu rumo, em direção a outra estação, no centro de Vitória. Aos poucos vou distinguindo cada bairro, e cada ponto marcante de Vitória e Vila Velha, naquela viagem.
- “Lá está o Palácio do Café; o Aterro da Comdusa, onde o Papa João Paulo II celebrou uma missa campal; ali na frente é a Enseada do Suá...”. E assim, vou reparando em todos os detalhes e contornos de Vitória.
Somente quem andou naquela barca sabe do que estou falando. E convido você caro leitor, que faça esse passeio de barca entre as duas cidades, tenho certeza que irão gostar muito.
- “Já estou chegando no Clube Álvares Cabral. Ali na frente é a Prefeitura. Daqui a pouco estarei passando em frente ao prédio da Rede Gazeta, e então chegaremos no Terminal do Colégio Dom Bosco”.
E assim, eu ía marcando os pontos característicos das empresas e locais públicos de Vitória, até chegar ao meu destino, que era a estação do centro da cidade.
Depois de ter parado no Terminal do Dom Bosco, como é conhecido aquele terminal, volto a minha atenção para um dos pontos mais bonitos daquela viagem, de um lado o Clube de Regatas Saldanha da Gama, com seus canhões apontados para a Baía de Vitória, do outro lado da margem, a pequena pedra que está ao nível do mar e, a enseada, tema de outra crônica deste livro.
- “Lá está a Primeira Igreja Batista, a Praça Getúlio Vargas, o estacionamento, os fundos da Mesbla, onde trabalho, o Banco Itaú e já estou quase chegando”.
Aos poucos a barca em que viajo vai chegando ao seu destino, e percebo aos poucos como aquele passeio me foi benéfico. A barca pára, salto para o cais e ganho a avenida Beira-Mar.
Olho para o relógio confiro o tempo da viagem, e o tempo que ainda falta para começar mais um dia de trabalho. Apesar do início da manhã, vejo algumas pessoas caminhando em direção aos seus locais de trabalho, continuo a minha caminhada pela calçada, com destino a Praça Getúlio Vargas, mas ainda me dou ao privilégio agora, de vislumbrar uma boa parte da Baía de Vitória, os navios ancorados no Porto de Capuaba, e a enorme quantidade de carros Towner que estão desembarcando do outro lado. Chego próximo do estacionamento, que fica atrás da Mesbla, e ainda me deparo a olhar as belezas naturais daquela Baía.
Logo, alguém passa e me chama para mais um dia de trabalho, só então é que percebo, que quando sair do trabalho será tarde demais para voltar para casa de barca. Mas aí já é uma outra história e, certamente a empresa em que trabalho não iria nos deixar na mão. Mas que valeu a pena, valeu! Pois saí de casa irado com a greve, e agora depois desse passeio, sinto uma tremenda paz espiritual.

P.S.- Acabo de escrever esta crônica, que é um relato do que passei, depois de quase 15 anos.

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