sexta-feira, maio 19, 2006

Com certeza...



Com certeza, de quê?

Paulo de Almeida Ourives

Numa era de incertezas, crises monetárias, econômicas e políticas, eis que surge um jargão que parece ter caído no gosto popular. Principalmente, na boca de locutores que ao que parece jamais estudaram tão profundamente a língua portuguesa. Nada mais chato, do que ouvir um sem número de vezes a expressão “com certeza”. É “com certeza” para cá, é “com certeza” para lá, e ao que parece quem o diz, não percebe que tanta “certeza” é sinal de incerteza. Enfim, é um “saco”, e parodiando um professor, “diria que isso é fruto de uma pobreza de vocabulário.
Em uma emissora de rádio FM de Campos, há uma locutora que deveria mudar de nome, e passar a se chamar Locutora “Com Certeza!”. Pelo visto ela deve ser uma daquelas modelinhos bem bonitinhas mas burrinhas, como a Manoela que apareceu em um Big Brother recente, ou quem sabe, talvez seja uma daquelas bonequinhas de brinquedo que quando se aperta a barriguinha ao invés de falar “Ma-mãe”, ela fala “com certeza!”. Às vezes me vejo tentado a fazer sabe o quê? O de cronometrar o tempo, e contar quantas vezes ela fala “com certeza” por minuto.
Ora, matematicamente é fácil fazer essa conjectura, afinal se ela consegue pronunciar seis frases por minuto, e em cada frase ela usa a expressão “com certeza”, no início, meio e final de cada frase, chegamos a contar 18 vezes a expressão “com certeza”, é lógico que em alguns momentos ela consegue ir mais além e pronuncia a expressão “com certeza”, além da conta, e chegamos a 20 vezes a expressão “com certeza”, por minuto.
Multiplicando as 20 vezes por minuto por 10 minutos de programa, ela consegue alcançar a marca de 200 vezes a pronúncia dessa expressão. E se multiplicarmos essa quantia (200) por seis, concluiremos que em uma hora ela pronuncia a expressão “com certeza”, 1.200 vezes.
Sendo ela, locutora de rádio com um programa de seis horas, mas cuja metade do programa é de música, podemos afirmar que, multiplicando as 1.200 vezes em que ela fala a expressão “com certeza” em uma hora, por três horas, chegaremos a expressiva quantidade de 3.600 vezes a pronúncia da expressão “com certeza”.
Essa expressão pronunciada inúmeras vezes no rádio, e que já está na boca do povo, pode ser considerada como um “estupro” aos ouvidos de quem ouve àquela emissora. É nessas horas que como repórter gostaria de ouvir a palavra de um filólogo de renome, quem sabe o falecido Aurélio Buarque de Hollanda, para saber dele, o que ele acha da expressão “com certeza”? Confesso que já imagino a resposta que ele me daria, ou seria com uma outra expressão rápida, pequena, grossa e rasteira como “é uma m...”, ou usaria de palavras rebuscadas como um autêntico Ruy Barbosa, para responder, e eu me veria na triste situação de procurar um dicionário para traduzir as palavras que em outras coisas significa que ele resolveu dizer que a locutora tem pobreza de vocabulário.
Mas se vocês pensam que as coisas param por aí, enganaram-se, infelizmente a expressão “com certeza”, consegue bater todos os recordes do chatismo. Então eu pergunto: “Para quê estudar a língua portuguesa, se alguns locutores de rádio e porque não dizer, artistas também, conseguem assassinar a língua que usamos para escrever, falar e nos comunicar com o mundo?”.
Uma pessoa chegou a afirmar que o brasileiro é um poliglota, porque a língua portuguesa possui tantos dialetos e expressões diferentes para a mesma coisa, que quando um cidadão viaja para outro estado brasileiro, acredita que está na verdade em outro país completamente diferente. Como o Brasil, país em que vivemos possui 26 estados e cada qual o seu dialeto, teremos um total de 27 maneiras diferentes de falar e nos comunicar (uma língua e 26 dialetos). Mas, como a língua coloquial é diferente da língua culta, chegaríamos a 28 modos de pronunciar a língua portuguesa. Vocês acham que é só? Não, porque ainda não falei das diversas tribos, como os rockeiros, skatistas, surfistas, punkeiros e outras tribos que já não lembro mais. E certamente chegaríamos a 30 e talvez umas 40 maneiras de falar a língua portuguesa. Exagero? De modo nenhum.
A poucos anos atrás quando a expressão “a gente”, estava na moda, e acredito que foi a segunda expressão a encher a paciência de muita gente. Ouvi uma entrevista de um cantor de rock popular, de um grupo famoso (não lembro mais o nome dele, nem o do grupo), na Rádio CBN, e fiquei pasmo de ouvi-lo pronunciar a expressão “a gente”, inúmeras vezes. Ele conseguiu a proeza de pronunciar essa expressão substituindo-a pelas seis pessoas do pronome pessoal reto, eu, tu (você), ele, nós, vós (vocês) e eles. E continuo com a mesma indagação acima, “para quê estudar a língua portuguesa, se um monte de imbecis conseguem assassinar a língua que usamos para escrever, falar e nos comunicar com o mundo?”.
Não quero extenuá-los, ou dar uma de “Visconde de Sabugosa Pós-Moderno da Língua Portuguesa”, porque para isso já temos um professor que é um catedrático no assunto e aparece diariamente na TVE, e nos domingos no jornal O Globo, o Professor Pasquale Cipro Neto. Mas gostaria apenas de fazê-los refletir um pouco mais, principalmente na hora de falar alguma coisa, e não serem tão “pó-bres”, culturalmente.
Mas, como a cada ano as coisas vão ficando pior do que já estão, é lógico que algumas expressões já entraram, foram pronunciadas e aos poucos vão ficando esquecidas pela maioria da população. Como por exemplo, o “por exemplo”, que morreu laconicamente de tédio por ter sido substituído por um “tipo assim”. Fora outras expressões como, “é ruim hein!”, “nem brincando”, “não é brinquedo, não!”, “só no sapatinho”, e por aí vai.
Agora, se houve uma expressão que acredito foi assassinada por ter sido pronunciada fora de hora, esta foi o “positivo”. Quem não se lembra do programa Cidade Alerta, da TV Record, que era apresentado pelo Luis Datena? Em algumas reportagens policiais, o repórter ao ouvir a pronúncia do policial militar, ou do delegado escutava um sonoro “positivo!”.
Vamos fazer uma brincadeira?!
Que tal se nós tivéssemos criado a máquina do tempo em nossas mentes e pudéssemos ver uma reportagem que chocou o país, como a “chacina de Vigário Geral”.
Imaginem que em frente à casa dos chacinados há um camburão da PM, e o repórter ou a repórter como queiram, chega no local, sai do carro da TV em desabalada carreira com um microfone em punho na direção do policial, e o cinegrafista correndo também, mas atrás da repórter e, do lado oposto um PM fardado, aprumando o bigode e pensando:
- “Oba, uma repórter de TV, que legal, vou aparecer na TV, o meu filho irá me ver, vou ser artista de TV”.
A repórter então, chega esbaforida, quase sem voz, e pergunta de sopetão: “o que aconteceu aqui?”, e o nosso herói então responde também de sopetão, tão rápido que nem pensa ou reflete sobre a pergunta e solta um “Positivo!”, e lá se vai por terra qualquer expressão de sentimento ou de comoção sobre o que aconteceu. “Positivo” de quê? Será que uma chacina é algo assim, tão positivo?
E tenho certeza absoluta que ainda aparecerá alguém para responder, “com certeza!”.
Mas, com certeza, de quê?

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