sexta-feira, maio 19, 2006

O olhar de uma criança


O olhar de uma criança

Paulo de Almeida Ourives

Era uma tarde qualquer de um dia de semana. Voltava para casa, como tantas outras pessoas, depois de um longo dia de trabalho. Ônibus lotado, a avenida em que me encontrava estava repleta de veículos parados, motoristas impacientes, apertavam insistentemente as mãos e os dedos contra a buzina, como se isso fosse adiantar alguma coisa. O trânsito parado não fluía, e a medida que o ônibus andava um pouquinho que fosse, por alguns poucos metros, podia perceber pela janela que o trânsito ali estava completamente congestionado. Era difícil de imaginar o que havia acontecido, mas isso já não importava muito, pois mais alguns minutos e eu estaria em casa.
De repente, em meio aquele turbilhão de buzinas estridentes, pessoas reclamando da demora, gente falando alto, outros assobiando em algum banco lá atrás. Havia também uns fanáticos dentro do ônibus fazendo suas orações e pregações da Bíblia em voz alta, como se isso fosse adiantar alguma coisa, lembrei de algumas palavras da Bíblia, onde Jesus chamou de fariseus, aqueles que faziam orações e pregações em locais públicos somente para chamar a atenção de quem quer que passasse perto deles.
Mas, ali, naquele portão, vi uma criança, com um olhar perdido diante de um mundo desumano. Seu olhar, parado no tempo e no espaço, me dizia que seus pensamentos estavam muito, muito longe dali. Não sei, se naquele semblante havia um profundo pesar de tristeza, por estar ali, atrás daquele portão a ver um sem número de carros parados, buzinando, fazendo o maior estardalhaço sem sair do lugar, ou seria a tristeza de estar ali, presa atrás do portão, sozinha sem ter com quem brincar?
Comecei então a fazer mil conjecturas sobre aquele olhar que não me via. E procurei descobrir para onde olhava aquela criança, parada ali atrás daquele portão. Me transportei então para junto dela, a tentar enxergar o mundo que ela via, milhares de pessoas naquele momento indo para aquela direção passando ali, na porta da casa onde ela morava, para onde iam? Para suas casas? Para o trabalho? Iam viajar? Aquela criança fazia mil perguntas, mas não encontrava respostas.
Era apenas um olhar vazio, distante, numa profunda reflexão ou, numa viagem distante dos seus olhos e da sua mente.
Tentava, e procurava entender aquele olhar, parado no tempo, e também eu, não conseguia entender ou achar o local para onde eles olhavam, ou aonde eles estavam. Mas sei, que aquela criança ali, com seus quase seis para sete anos, estava a olhar profundamente para o mundo.
Foram poucos minutos, nem sei direito quanto tempo, e quando o ônibus então resolveu andar um pouco mais, percebi naquele peito um profundo suspiro, de quem estava voltando daquela longa viagem, pelo mundo dos seus pensamentos, voltava portanto a si, e para o mundo que a rodeava, eis então que aquela criança girou sobre os calcanhares, virou-se para dentro de casa e entrou.
O ônibus já estava andando, o sinal estava aberto, e eu fiquei olhando aquela criança entrando em sua casa, talvez para tomar um banho, jantar e ir dormir, ter uma boa noite de sono, e sonhar. Mas o seu olhar, longe, distante, no mundo, eu vi, e nunca esqueci.

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